terça-feira, 27 de junho de 2017

A vida na sarjeta

A vida na sarjeta é um desses relatos que nos leva a fazer um paralelo com a realidade brasileira. O nível de degradação da subclasse (underclass) inglesa é facilmente identificável numa parcela enorme da população brasileira pobre e sem instrução.
E não só isso. Os fatores disfuncionais apontados como causa da pobreza lá, para além do discurso automático das causas econômicas da pobreza, também podem ser identificados em nossa realidade. Não podemos nos esquecer que a análise de Dalrymple é fruto também de sua experiência na América Latina e África. Também muitas das críticas às elites intelectuais de lá valem para as nossas elites.

Não se trata de defender uma importação mecânica de sua interpretação para o caso brasileiro, mas de propor um paralelo frutífero para nossas reflexões.

quinta-feira, 1 de junho de 2017

É chique ser grosseiro (artigo na revista Amálgama)

https://www.revistaamalgama.com.br/05/2017/danilo-gentilli-maria-do-rosario-chique-ser-grosseiro/


O que diremos de formadores de opinião que tentam elevar a vulgaridade ao patamar de “disputa política”?

Num recente artigo aqui na Amálgama eu critiquei cineastas que promoveram a censura ao filme O jardim das aflições sobre o pensador Olavo de Carvalho. Concluía o texto afirmando que o nosso interminável subdesenvolvimento intelectual, moral e político não era obra de apenas “um lado” e que o comportamento daqueles cineastas era uma boa oportunidade de reflexão.
Passadas apenas algumas semanas, eis que a “direita” protagoniza um triste espetáculo. Eu me refiro ao apoio massivo dado ao vídeo do humorista Danilo Gentili em resposta à deputada petista Maria do Rosário.
O vídeo pode ser visto apenas como mais um golpe publicitário que aumenta a audiência e a conta bancária do apresentador. Quanto ao conteúdo do vídeo, pessoalmente eu prefiro um humor que escrache os políticos e preserve o decoro, a decência e o bom gosto. E não precisamos fazer muitas elucubrações quanto a isso; basta você comparar, por exemplo, o personagem de Chico Anysio, “Deputado Justo Veríssimo”, e mesmo o humor do Casseta e Planeta, para perceber quão grosseiro e mal-educado é o vídeo em questão.
Reconheço também, embora não use como justificativa, que a degradação nesse contexto é dupla. Só mesmo uma política tão achincalhada como a nossa para permitir esse tipo de lixo.
Liberais e conservadores, mas não só eles, deveriam ler o pensador conservador inglês Theodore Dalrymple. Ele é especialmente preocupado com a rápida decadência moral ocorrida na Inglaterra e no Ocidente de um modo geral. Dalrymple responsabiliza o freudianismo, o marxismo e autores como John Stuart Mill por estimularem um relativismo total, de modo que os valores caros às relações sociais estejam simplesmente desmoronando. Embora o autor dirija sua crítica à esquerda e aos progressistas, não nos enganemos: ela cai como uma luva no comportamento de Gentili e da manada que decidiu apoiá-lo nas redes sociais.
Eu me refiro especificamente ao capítulo “É chique ser grosseiro” do livro A vida na sarjeta: o círculo vicioso da miséria moral. Dalrymple examina como o comportamento marcado pela vulgaridade e violência praticado cada vez mais por ingleses das classes mais pobres (subclasse/underclass), mas não só elas e, em especial, por celebridades, ganha ares de normalidade nas relações sociais. Um exemplo: Dalrymple foi a Roma para uma reportagem sobre vandalismo de torcidas de futebol. O jogo era Itália X Inglaterra. Segundo ele, os 10 mil britânicos que foram ao jogo têm empregos que pagam muito bem, que exigem instrução e treinamento. No estádio ele presenciou os “típicos modos desagradáveis” das torcidas, que cantavam insultos por quase três horas contra a torcida italiana. Aos poucos com que ele pode conversar, perguntou se “Não achavam impróprio viajar 1.600 km somente para gritar obscenidades para estranhos?” Eles respondiam que achavam divertido e era também uma “libertação necessária”.
Libertação exatamente de quê? Da frustração, responderam, caso respondessem alguma coisa. A nenhum deles ocorreu que os dramas mesquinhos de suas vidas particulares não justificam uma atividade antissocial. Pensavam que a frustração era como o pus em um abscesso, melhor fora do que dentro, e recordei-me de um assassino que certa vez me disse que teve de matar a vítima, caso contrário não sabia o que poderia ter feito.
Não acredito que Gentili viva alguma frustração pessoal. Seu drama mesquinho é ganhar audiência e com ela, dinheiro. Se em nossa sociedade há quem goste do que ele faz, tanto melhor para ele. Mas o que me chama a atenção é o apoio político que ele recebeu.
Voltando à repercussão nas redes sociais, observei algumas páginas e blogs de movimentos e formadores de opinião de direita que ocasionalmente acompanho e destaquei alguns deles: “Para a esquerda: colocar dinheiro na cueca: tudo certo. Colocar papel picado na cueca: nossa, que absurdo, machista” (8 mil curtidas, 3 mil compartilhamentos). “Bundaço Fora Temer: manifestação cultural da esquerda lacradora. Passar tentativa de censura no saco: ato fascista repugnante da direita raivosa”. (8 mil curtidas, 3600 compartilhamentos). Tela do Twitter de Maria do Rosário ameaçando processar o apresentador e logo abaixo um comentário: “E o dinheiro que recebeu da empreiteira? Vai ser usado pra pagar os advogados?” (29 mil curtidas, 4200 compartilhamentos). Mais uma tela com a denúncia da deputada e vários comentários no mesmo tom (24 mil curtidas, 3500 compartilhamentos). Montagem: foto conhecida de Lula com a mão dentro da calça e a deputada sorrindo; foto de Gentili com a mão dentro da calça e a deputada chorando (16 mil curtidas, 2750 compartilhamentos). O site Catraca Livre classificou o ocorrido de baixaria e seus opositores lembram que o site tentou usar a tragédia da Chapecoense para ganhar views (15 mil curtidas, 1600 compartilhamentos). Formadores de opinião em economia, política e filosofia cujas análises normalmente aprecio, todos seguindo a manada. Finalmente, um determinado blog reconhece que o apresentador passou dos limites, “Mas em um momento em que é preciso quebrar a espiral do silêncio, atitudes desse tipo são mais que urgentes” (20 mil curtidas, 2200 compartilhamentos).
Observem que há um padrão: eu justifico o comportamento do humorista pelos erros do outro lado. Eu não o justifico por possíveis méritos inerentes ao comportamento em si, se houver. Eu sou vulgar porque você é também vulgar. É possível encontrar postura mais infantil e superficial? O que impedirá, no limite, de dizerem “o meu candidato rouba porque o seu também o faz”?
Mais uma vez Dalrymple pode ser útil. Em seu livro Em defesa do preconceito: a necessidade de se ter ideias preconcebidas, ele mencionará uma garota problemática que afirma xingar alguns professores porque não gosta deles. Ele dirá:
A ideia de que não gostar de alguém não constitui base suficiente para xingar esse alguém, o fato de relações sociais toleráveis requererem autocontrole, de viver em sociedade implicar o dever de se submeter a limites não foram noções inculcadas nessa garota como um preconceito, e agora parecia muito improvável que ela aprendesse essas coisas, e muito menos provável ainda que fosse conformar o seu comportamento a tais padrões.
Reparem que ele se refere a meninas (a garota no caso tem apenas 14 anos de idade) com pouca instrução, num contexto de família inglesa desestruturada e baixa classe social, que mal conseguem usar a língua nativa corretamente e lutam para se fazer compreender “como se fossem vítimas de um derrame”. O que diremos então de marmanjos bem alimentados que frequentaram boas escolas e tentam se passar por jovens problemáticos? O que diremos de formadores de opinião que tentam elevar a vulgaridade ao patamar de “disputa política”? Talvez eles deem de ombros e digam, cinicamente, “a esquerda me faz agir assim”.
Gentili conclui seu vídeo tentando ensinar algo edificante: “Eu pago seu salário, então eu decido se você cala ou não a boca, nunca ao contrário”. E sugere que seus apoiadores digam o mesmo a todos os políticos que tentarem censurá-los. Quem foi que disse que Gentili paga sozinho o salário da deputada? Quem concorda com ela não paga também? E mesmo que esse raciocínio fosse correto, com que direito ele manda alguém calar a boca? E mais, o direito que ele tem de falar (que nega ao outro) garante que ele falte ao respeito com quem quer que seja?
Que imbecilidades e grosserias sejam ditas por indivíduos isolados por motivos os mais diversos é algo que acontece e, se for o caso, que sejam punidos por isso. Mas quando assistimos a movimentos políticos e formadores de opinião que dizem lutar por uma nova forma de fazer política e novos ideais embarcarem nessa estupidez, é digno de pena.