sábado, 27 de fevereiro de 2016

Herege: por que o islã precisa de uma reforma imediata

Um livro mais formal que os anteriores, Herege, não é menos extraordinário. Embora a autora reconheça que não possui o conhecimento teológico formal e, por isso mesmo, convide os clérigos muçulmanos a participarem do debate, Ayaan segue um roteiro em que descortina a sua tese central: o islã não é uma religião de paz e necessita urgentemente de uma reforma. Em sua opinião, os elementos teológicos que justificam a violência devem ser extirpados. Para tanto apresenta os cinco princípios que devem ser reformados:



  1. A posição de Maomé como semidivino e infalível, juntamente com a interpretação literal do Alcorão, em especial as partes que foram reveladas em Medina;
  2. O investimento em uma vida após a morte em detrimento da vida antes da morte;
  3. A sharia, o conjunto de leis derivadas do Alcorão, o hadith e o resto da jurisprudência islâmica;
  4. A prática de dar a indivíduos o poder de aplicar a lei islâmica ordenando o certo e proibindo o errado;
  5. O imperativo de fazer jihad, ou guerra santa.


Em sua argumentação Ayaan identifica três tendências entre os muçulmanos e que nos ajuda a compreender melhor o islamismo hoje:
- Muçulmanos de Medina: é o grupo formado pelos radicais, alguns deles tornando-se terroristas. Consideram o dever religioso impor a sharia pela força. Esse grupo enfatiza os ensinamentos contidos no Alcorão que foram elaborados por Maomé no período em que ele estava na cidade de Medina marcado por lutas sangrentas entre os muçulmanos e os grupos de outras crenças.
- Muçulmanos de Meca: representa a maior parte dos muçulmanos. Estão voltados para a observância religiosa e não se sentem inclinados a praticar violência. Esse grupo de devotos, em princípio, estaria aberto ao debate sobre as reformas. No entanto, há um problema para as comunidades desse grupo que vivem no Ocidente. Os seus membros vivem numa tensão permanente entre manter suas crenças e viverem sob a modernidade tecnológica e os valores liberais do Ocidente.
“Para muitos desses muçulmanos, após anos de dissonância [cognitiva] parece haver apenas duas alternativas: deixar o islã de uma vez, como eu fiz, ou abandonar a insípida rotina de observância diária em favor do credo islâmico inflexível oferecido por aqueles que rejeitam explicitamente a modernidade ocidental – os muçulmanos de Medina.”
- Muçulmanos modificados ou reformistas: é um grupo minoritário formado por dissidentes que continuam ligados ao islamismo, mesmo não crentes como Ayaan, incluindo alguns clérigos que aceitam debater as mudanças no islã. A crítica de Ayaan é que, devido ao viés multiculturalista, esse grupo não tem recebido o apoio necessário no Ocidente. Ela estabelece um paralelo poderoso: por que o Ocidente não apoia esses dissidentes na mesma medida em que apoiou os dissidentes do comunismo durante a guerra fria? Ou por que o Ocidente não pressiona os estados islâmicos radicais da mesma forma que pressionou pelo fim do apartheid na África do Sul?

Infiel: a história da mulher que desafiou o islã

Que grata surpresa foi "Infiel: a história da mulher que desafiou o islã" (2012).Com Infiel eu pude aprofundar em detalhes aquele objetivo inicial de conhecer melhor o islã. Nele temos uma descrição das práticas do islã, suas concepções básicas sobre o mundo e como a cultura de clãs e subclãs anterior ao islã contribuiu para sua elaboração enquanto doutrina política e religiosa até os dias atuais.
Porém, há algo mais fundamental no relato biográfico de Ayaan Hirsi Ali. Infiel é uma história de construção individual. É a história da luta do indivíduo, e não um indivíduo qualquer, mas uma mulher em um ambiente tradicionalmente hostil às mulheres, para superar seus limites pessoais e as chantagens familiares (com o discurso da 'culpa' em defesa da honra e para afastar a ‘vergonha’ da família e do clã caso ela não seguisse os valores estabelecidos). A luta de Ayaan é também a superação de dogmas políticos e culturais fortemente arraigados no seu clã de origem, na sua religião e na estrutura política de seu país.
A construção da liberdade interior de Ayaan a leva a cultivar o pensamento crítico marcado pela dúvida e autocrítica permanentes, incapazes de florescerem sob o islamismo e os estados que o adotam como religião oficial.
Enfim, a história de Ayaan é como um vento fresco que sopra em nosso rosto e nos encoraja a repensar nossas verdades e sermos perseverantes na superação de valores caros em nossa formação, mas que não atendem mais às nossas inquietações.

A virgem na jaula: um apelo à razão

Ayaan Hirsi Ali conseguiu uma proeza! Em minha opinião é difícil encontrar um autor com o qual você se identifique quase integralmente com suas ideias e admire tanto sua trajetória de vida. Ela conseguiu isso de mim. Já há algum tempo que planejava ler algo sobre o islã, em especial depois da série de atentados que temos assistido. O objetivo era ter um conhecimento mínimo sobre conceitos, história, ambiente cultural e, é claro, a teologia do islã.
A partir do artigo de Mário Vargas Llosa decidi comprar o livro "Herege: por que o islã precisa de uma reforma imediata" porém, me deparei com uma promoção na Amazon e (felizmente) comprei mais dois: A Virgem na Jaula e Infiel.

Adotei o critério de ler a partir da ordem cronológica da publicação. A virgem na Jaula (2008) pode ser visto como um livro-denúncia e está focado nos maus tratos sofridos por meninas e mulheres pertencentes às comunidades islâmicas, inclusive no Ocidente. A autora descreve, como conhecimento de causa uma vez que trabalhou como intérprete para refugiados, as ocorrências de violência doméstica, casamentos arranjados, mutilação genital, vigilância permanente por parte de familiares e membros do clã entre outras situações humilhantes por que passam as mulheres nas comunidades muçulmanas  existentes na Holanda onde Ayaan viveu por algum tempo. É alvo de crítica também os governantes holandeses defensores do multiculturalismo que alegam não interferir nesses crimes para não “ferir a sensibilidade cultural” dos envolvidos, sem levarem em conta a vida privada nas culturas que defendem.
“Os culturalistas decepcionam os muçulmanos que, como eu, atenderam ao chamado para mostrar seu senso de responsabilidade pública e falar abertamente.”

Ayaan também é uma mulher de ação. O capítulo 13 é dedicado a “10 dicas para as muçulmanas que querem fugir” de suas famílias e comunidades. Por sua postura combativa foi eleita deputada pelo Partido Trabalhista, porém em 2002, foi para o Partido Liberal.

Coração devotado à morte: o sexo e o sagrado em Tristão e Isolda de Wagner

Definitivamente, este é um livro que devo reler. Entre leituras interrompidas e outras feitas durante pequenas viagens, Coração devotado à morte merece muito mais atenção e anotações.
E não me refiro apenas  ao capítulo 4 dedicado à música de Tristão e Isolda que requer conhecimento de musicologia.  Todos os demais capítulos são de uma riqueza e detalhes filosóficos que exigem, ou melhor, merecem uma leitura acurada. A advertência de Scruton de que o livro não deve ser lido apenas com um guia do drama musical de Wagner, mas também como um estudo de caso da filosofia kantiana do homem, dá-nos uma ideia da proposta do autor e do que nos espera.
Aqui eu destaco o seguinte:
- Um esclarecimento sobre o título do livro
No motivo 13 Isolda canta: “Cabeça devotada à morte! Coração devotado à morte!”
“A cabeça é a de Tristão – símbolo da busca racional de objetivos mundanos; o coração é de Isolda – símbolo de uma paixão que nenhuma razão e nenhum objetivo mundano podem dissipar.” (p. 55)
- Filosofia do olhar
“De sua cama olhou para cima – nem para a espada, nem para a mão – olhou nos meus olhos.”
Scruton nos lembra que neste trecho existe uma fenomenologia do olhar. Olhamos para objetos inanimados e para partes do corpo humano, porém olhamos nos olhos de uma pessoa. E esse olhar nos olhos de alguém está repleto de significados, de desejo; são olhares comprometedores, invocando ora o ódio, ora o amor.

Scruton menciona os estudos de Merleau-Ponty, Sartre e Hegel a esse respeito concluindo que para esses três filósofos “ o olhar está relacionado à condição existencial da autoconsciência – a condição que nos distingue dos outros animais. Os animais podem olhar para os seus olhos; eles não podem olhar nos seus olhos, apesar das ilusões dos amantes dos bichos de estimação.” (p. 59)
- A morte e nossa crença no sobrenatural
Ao discutir  a noção de sagrado Scruton indica sua relação com a morte. A morte nos apresenta o corpo humano desprovido de alma, um objeto sem sujeito, frouxo, sem governo e inerte. Em última instância diz respeito à carne humana sem o eu. “O corpo não é menos um objeto do que um vazio no mundo dos objetos.”
A relação com o sagrado advém da reverência que é prestada ao morto em todas as sociedades. Porém, por que devemos reverência aos mortos? Scruton sugere que estando diante de um morto reagimos de modo não só a temer (a morte), reverenciar (o morto), mas também a alimentar nossa crença no sobrenatural: “De algum modo, esse corpo ainda pertence à pessoa que desapareceu: imagino-a exercendo seu direito sobre ele desde regiões espectrais, onde não se pode tocá-la. Ao defrontarmo-nos com a morte, portanto, nossa imaginação dirige-se espontaneamente para o sobrenatural.” (p. 236)

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Eu acho muito legal quando um especialista (neste caso um filósofo) interpreta ou explica uma obra. A sensação é que, para além da compreensão racional, conseguimos interagir de modo mais completo com ela.
O livro de Roger Scruton vai nesta direção, porém, para quem não conhece Tristão e Isolda eis algumas dicas:

- Filme de Kevin Reynolds. Com todas as "licenças poéticas" que um filme normalmente implica - https://youtu.be/X6YmozE_Y1U

- Tristão e Isolda em PDF (apenas 38 páginas!) - http://www.agrandeopera.com.br/wp-content/uploads/2013/10/tristaoisolda.pdf

- A música regida por  Herbert von Karajan - https://youtu.be/L44Ml8K_mDg

- A ópera com Montserrat Caballé e Richard Versalle  (legenda em espanhol) - https://youtu.be/5owplUAW9E8

  

Como pensar mais sobre sexo

A leitura de Coração devotado à morte de Roger Scruton com suas observações sobre o amor cortês e o erotismo me levaram a Alain de Botton e Harry Frankfurt (As razões do amor).
De modo objetivo Botton passa, um a um, por temas relacionados à sexualidade, como  amor, erotismo, solidão, rejeição, impotência, adultério, pornografia, censura etc. e mostra como estamos equivocados a respeito das pré-noções que temos sobre eles e sobre o que eles realmente significam para nós. “Somos universalmente pervertidos – mas apenas em relação a ideais de normalidade altamente equivocados.”


Viajando na leitura




O Projeto 198 livros de Camila Navarro foi uma dica para a criação de meu blog. Vocês podem observar que lá ela indica vários blogs com a mesma proposta e neste artigo no Janelas Abertas há indicações da mesma ideia fora do Brasil. Na verdade eu já havia tentado por em prática algo semelhante, porém a coisa funcionou de forma assistemática e sem muito compromisso. Tomando o critério adotado por Camila, escolher livros que “representem de alguma forma os aspectos culturais e/ou históricos de um país e que tenham sido escritos por autores locais”, na medida em que eu viajava ia lendo alguns livros dos respectivos países (listados abaixo).
É difícil dizer o quanto a ambientação histórico-cultural de um romance nos diz sobre o lugar visitado. Obviamente, isso dependerá do livro. Pessoalmente tive sorte na escolha de alguns desses livros. Dois exemplos. O livro sobre o Camboja, longe de ser um romance, é um testemunho comovente sobre um período trágico na história do país. Estando lá em 2010 e visitando os Campos de Extermínio e a prisão S21 (o equivalente brutal ao DOPS brasileiro) eu pude perceber toda a força dos relatos de pessoas que experimentaram o terror quando crianças, mas sobreviveram para contar a história. Na minha história pessoal a visita ao Camboja foi uma oportunidade para refletir, mais uma vez, sobre como, num determinado momento de minha juventude, eu pude defender tais sistemas políticos. 
Prisão S21
Campo de extermínio

Em minha viagem ao Uruguai em 2013 eu tentei visitar alguns lugares descritos  em A trégua de Mário Benedetti. Cafés, praças e edifícios públicos em Montevidéu por onde passavam os personagens me faziam rememorar o livro e experimentar a sensação de já conhecer um pouco melhor aqueles ambientes. Cheguei a tirar uma foto da esquina 25 de Mayo com Misiones onde fica o café Las Misiones no qual Martín Santomé havia se declarado a Laura Avellaneda!
 “Ela estava ali, indefesa, ou melhor, defendida por mim contra mim mesmo.”
Só depois da viagem eu soube que os livros de Benedetti são muito apreciados pela descrição da parte velha de Montevidéu  inspirando a criação da Guia Benedetti.
Eu concluiria com uma sugestão. Se você gosta dessa ideia, mas não pode ou não gosta de viajar para fora do Brasil, por que não ler livros ambientados em cada estado brasileiro? O problema do idioma ficará para trás e conseguir os livros será muito mais fácil. A dificuldade talvez seja estabelecer critérios para escolher livros cujos estados sejam abundantes em autores consagrados. Que tal?
Fato curioso: os blogs que embarcaram na ideia de Camila (veja o item “O projeto ganhou asas!” em sua página) foram idealizados apenas por mulheres! No artigo do Janelas Abertas só aparece um homem (John Brookes)!
E eu tenho a impressão que eu não vou alterar essa estatística, pois, embora considere uma ideia excelente eu preciso antes resolver essa pendência chamada tsundoku :) 

Minha lista de livros/países:
Cry the beloved country – Alan Paton (África do Sul)
Man alone – John Mulgan (Nova Zelândia)
The New Zealanders – Maurice Shadbolt (Nova Zelândia)
Português suave – Margarida Rebelo Pinto (Portugal)
Children of Cambodia's Killing Fields: Memoirs by Survivors -  Dith Pran (org.) (Camboja)
Burmese days –  George Orwell (Myanmar)
Voci – Dacia Maraini (Itália)
A trégua – Mario Benedetti (Uruguai)
La aventura de Miguel Littín clandestino em Chile - Gabriel García Márquez (Chile)
Viagem ao crepúsculo - Samarone Lima (Cuba)

Teatro

Sobre as oito peças de teatro de Machado de Assis contidas neste volume o que posso dizer é que apenas duas me agradaram: “Quase ministro” (comédia) e “Tu só, Tu, puro amor” (drama a respeito do suposto amor entre Camões e D. Catarina). Gostei ainda de “Suplício de uma mulher” traduzida do francês.
As demais me pareceram bem lineares, açucaradas e muitas vezes sem qualquer propósito. Interessante que ao lermos as críticas de teatro nos volumes anteriores não esperamos que o autor cometa os mesmos erros por ele apontados.
Minha impressão, e não passa disso, “impressão”, ficou ainda mais forte ao ler a nota de Mário de Alencar (1910) na introdução do volume na qual cita carta de Quintino Bocaiúva respondendo a Machado que havia lhe pedido sua opinião sobre as peças:
“Como lhes falta a ideia, falta-lhes a base. São belas, porque são bem escritas. São valiosas, como artefatos literários, mas, até onde a minha vaidosa presunção crítica pode ser tolerada, devo declarar-te que elas são frias e insensíveis, como todo o sujeito sem alma. (...) As tuas comédias são para serem lidas e não representadas.” (p. 4)

Num folhetim sobre Suplício de uma mulher Alexandre Dumas Filho, citado por Machado, dá uma dica preciosa para quem quer escrever ou apreciar uma obra: “...quem escolhe uma ideia deve não perde-la de vista um só momento, - deve fazer com que todas as personagens, todas as cenas, todas as palavras concorram para a expressão, dedução e demonstração dessa ideia, sob qualquer forma que se apresente, drama ou comédia.” (p. 301)

O Almada & outros poemas

Neste volume chamou-me a atenção as traduções de Machado para “O corvo” de Edgar Poe;  a famosa passagem do terceiro ato de Hamlet - “To be or not to be” de Shakespeare; da fábula de La Fontaine, “Os animais iscados da peste”  e o canto XXV, “Inferno” da Divina Comédia de Dante.

Ainda falta  ler "O Almada" de 1875.

Crítica & Correspondência

O fenômeno da profusão de ideias e a ansiedade das pessoas em comunicá-las podem ser exemplificados com a personagem Srª de Ris na peça As mulheres terríveis  analisada pelo escritor:
“Curiosa e indiscreta, pergunta para saber, e fala para dar pasto a uma irresistível vocação da tribuna. Não lhe escapa o menor movimento, o fato mais insignificante; quer saber tudo; tudo indaga, tudo perscruta, de tudo se informa. Depois, como se tanto conhecimento a afrontasse, não espera o trabalho digestivo da reflexão, deita o que sabe à primeira atenção em disponibilidade, ou sem ela.” (p. 26)
Este “pobre almanaque arrependido” não seria o internauta médio de nosso mundo digital?
Uma polêmica de nosso tempo
Gostaria de destacar um comentário sobre o personagem Lourenço da peça Escravo fiel (1859). Lourenço é um escravo fiel e que pratica boas ações ao longo da trama. Ao final de sua crítica Machado de Assis faz o seguinte comentário:
“Há uma frase lindíssima, entretanto, desse mesmo negro:
- Eu sou negro mas as minhas intenções eram brancas!” (p.76)
Para o escritor do século XIX esta é uma “frase lindíssima” que merece ser destacada pelo caráter de normalidade de seu tempo. Ao ler este comentário lembrei-me imediatamente da proposta de censura a algumas obras de Monteiro Lobato, destinadas às escolas, por nelas haver algumas frases de conteúdo racista. Do meu ponto de vista, antes de defender a censura, é preciso entender e ensinar o contexto histórico e as ideias dominantes na época desses autores. As crianças e alunos que se depararem com esse preconceito, precisam valer-se desse conhecimento para perceberem que somos frutos de uma época. Isso é aprendizado!
E se os alunos descobrirem que mesmo nessa época havia condições objetivas de crítica ao racismo, pior para os Machados e os Lobatos. No caso de efetivamente existirem essas “condições objetivas de crítica ao racismo” (pouco provável no caso de Machado de Assis), as crianças terão uma dupla e valiosa tarefa: primeiro, perceber que mesmo os escritores geniais não deveriam ser tomados como referência ética em certos aspectos da dignidade humana; segundo, que suas obras não podem ser reduzidas a frases ou comentários que hoje consideramos preconceituoso. Isso também é aprendizado. Mas censurar, jamais.

Balas de estilo & crítica

Como eu disse anteriormente, decidi ler as obras completas de Machado de Assis a partir da ordem cronológica em que foram publicadas. Seus primeiros escritos são crônicas, correspondências, críticas e contos. A Editora Globo nem sempre reuniu esses escritos segundo a cronologia, mas eu tentei organizar os volumes de acordo com esse critério.
No volume Balas de Estilo & Crítica algo me chamou a atenção em sua crítica O jornal e o livro. Machado saúda euforicamente a chegada do jornal como meio rápido e de fácil acesso às notícias. Segundo ele o jornal é a “tribuna comum, aberta à família universal”; “O jornal é a verdadeira forma da república do pensamento.”
O livro não possui o movimento nem a reprodução diária dos fatos que o jornal propicia. O jornal é literatura quotidiana, “Uma forma de literatura que se apresenta aos talentos como uma tribuna universal é o nivelamento das classes sociais, é a democracia prática da inteligência.”
Essa euforia quanto ao acesso democrático às informações me fez estabelecer um paralelo com o discurso eufórico da chegada da internet  como meio de nivelar e democratizar o conhecimento. O documentário Tudo Vigiado por Máquinas de Adorável Graça  (2011) de Adam Curtis, em sua primeira parte, descreve o ambiente político-cultural dos anos 60 que mesclou a crença no nivelamento do conhecimento com a internet e a construção de sociedades sem líderes. E descreve também como esse nivelamento falhou, ou melhor, como as pessoas não sabem o que fazer com o volume de informações que recebem, não sabendo distinguir a informação de qualidade.
Muitos pensadores contemporâneos têm discutido essa questão do excesso de informação e os malefícios que tal fenômeno pode acarretar. Lembrei-me, por exemplo, de Heidegger em seu Serenidade (1959) que, muito antes da existência da internet, alertava para o volume de conhecimento advindo com a técnica moderna. Heidegger  contrapõe o pensamento que calcula, associado à dominação da técnica, ao pensamento meditativo que reflete sobre a técnica. O pensamento meditativo não se deixa levar pela velocidade e volume de informações trazidas pela técnica levando ao esquecimento do que foi apreendido.
Nesse sentido também as reflexões de Umberto Eco atestam o caráter visionário das palavras de Heidegger: “A imensa quantidade de coisas que circula é pior que a falta de informação. O excesso de informação provoca a amnésia. Informação demais faz mal. Quando não lembramos o que aprendemos, ficamos parecidos com animais. Conhecer é cortar, é selecionar. (...) A internet é perigosa para o ignorante porque não filtra nada para ele. Ela só é boa para quem já conhece – e sabe onde está o conhecimento. A longo prazo, o resultado pedagógico será dramático. Veremos multidões de ignorantes usando a internet para as mais variadas bobagens: jogos, bate-papos e busca de notícias irrelevantes.”
É óbvio que o contexto histórico de Machado de Assis não permitia a análise crítica ao aparato tecnológico que se desenvolveu no século XX. Todavia, o mesmo Machado eufórico com a chegada do jornal não era indiferente ao que poderíamos chamar ansiedade das pessoas em comunicar suas ideias, algo bastante típico dos tempos das redes sociais digitais. Com seu permanente estilo sarcástico, eis como ele em Balas de Estilo aborda a questão:
“Não tardou que o correio começasse a entregar-me as respostas; e, como eu não pagava o porte, reconheci que há neste mundo uma infinidade de filhos de Deus, ou do diabo que os carregue, que estão à espreita de um simples pretexto para comunicar as suas ideias, ainda à custa dos vinténs magros.”