quarta-feira, 31 de maio de 2017

Memorial de Aires

Como havia dito em minha nota sobre Esaú e Jacó, o Memorial é bem mais atraente que aquele. Mais curto e leve - a narrativa do excelente personagem-observador, Conselheiro Aires, com a sabedoria de calar e apenas assentir com a cabeça “quando o assunto cansa ou aborrece” (p.75) - o romance prende a nossa atenção. 

Relíquias de casa velha

Uma casa tem muita vez as suas relíquias, lembranças de um dia ou outro, da tristeza que passou, da felicidade que se perdeu. Supõe que o dono pense em as arejar e expor para teu e meu desenfado. Nem todas serão interessantes, não raras serão aborrecidas, mas, se o dono tiver cuidado, pode extrair uma dúzia delas que mereçam sair cá fora.” – Advertência.

Esaú e Jacó

O romance Esaú e Jacó me pareceu um “ponto fora da curva” dentre os romances de Machado de Assis. Diferentemente dos demais - mesmo da fase inicial, romântica – os personagens me pareceram imaturos e a narrativa longa e pesada. Era necessário mesmo a introdução do Conselheiro Aires na estória ?
Interessante que este é o antepenúltimo romance, quer dizer, é já a fase madura do autor.

Com receio de estar falando uma grande bobagem dei uma olhada no consagrado Machado de Assis – estudo crítico e biográfico de Lúcia Miguel Pereira.   Na página 177 ela dirá: “Sem as indagações filosóficas do Braz Cubas e do Quincas Borba, sem o tédio do Esaú e Jacó e do Memorial de Aires, o Dom Casmurro é o mais humano dos livros de Machado.” Sim é entediante, mas o Memorial de Aires me pareceu bem mais atraente!

E mais adiante, “Livro repisado, livro de velho, o Esaú e Jacó. (...) No Esaú E Jacó, não passam aquelas correntes de angústia, não ecoam aquelas interrogações que representam a maior grandeza de Machado.

Tudo está apaziguado, domesticado.” (p. 182)

Várias histórias

Advertência do autor para a presente coleção, "...há sempre uma qualidade nos contos, que os torna superiores aos grandes romances, se uns e outros são medíocres: é serem curtos."
Quem se der ao trabalho de ler esta “Várias histórias” verá que a advertência é só modéstia do autor.

A cartomante:
- “a virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo.” P. 6

Uns braços:
- “...há ideias que são da família das moscas teimosas: por mais que a gente as sacuda, elas tornam e pousam.” P. 30
- “Percebeu que sim, que era amada e temida, amor adolescente e virgem, retido pelos liames sociais e por um sentimento de inferioridade que o impedia de reconhecer-se a si mesmo.” P. 31

Um homem célebre:
- “Foi a única pilhéria que disse em toda a vida, e era tempo, porque expirou na madrugada seguinte, às quatro horas e cinco minutos, bem com os homens e mal consigo mesmo.” P. 49

A causa secreta:
- “Não tinha ciúmes, note-se; a natureza compô-lo de maneira que lhe não deu ciúmes nem inveja, mas dera-lhe vaidade, que não é menos cativa ao ressentimento. Olhou assombrado, mordendo os beiços.” P. 75

Trio em lá menor:
- “...os dous olhavam um para o outro, discretamente, e afinal esquecidamente.” P. 82

O enfermeiro:
- “Adeus, meu caro senhor, leia isto e queira-me bem; perdoe-me o que lhe parecer mau, e não maltrate muito a arruda, se lhe não cheira a rosas. Pediu-me um documento humano, ei-lo aqui.” P. 99
- “Os velhos lembravam-se das crueldades dele, em menino. E o prazer íntimo, calado, insidioso, crescia dentro de mim, espécie de tênia moral, que por mais que a arrancasse aos pedaços, recompunha-se logo e ia ficando.” P. 107

- Esperança, “demônio de olhos verdes”, p. 119

Mariana:
- “ A paixão dos noivos prolongou-se na vida conjugal. Quando o tempo trouxe o sossego, trouxe também a estima. Os corações eram harmônicos, as recordações da luta pungentes e doces. A felicidade serena veio sentar-se à porta deles, como uma sentinela. Mas bem depressa se foi a sentinela; não deixou a desgraça, nem ainda o tédio, mas a apatia, uma figura pálida, sem movimento, que mal sorria e não lembrava nada.” P. 130

Viver!:
- “ Deus me perdoará, se quiser, mas a morte consola-me.” P. 167
- “... é que eu represento a força dos desesperos milenários. Toda a humanidade está em mim.” P. 171 

A semana II

Repito um pouco do que disse sobre “A semana I”, mas destaco essas passagens:

Parafraseando para a passagem do ano:
- “ Não me iludis, - dirá 2018, - sei que me não amais desinteressadamente; egoístas eternos, quereis que eu vos dê saúde e dinheiro, festas, amores, votos e o mais que não cabe neste pequeno discurso. Direis mal de 2017, vós que o adulastes do mesmo modo quando ele apareceu; direis o mesmo mal de mim, quando vier o meu sucessor.” P. 3

Questão de método:
- “Eu, posto creia no bem, não sou dos que negam o mal, nem me deixo levar por aparências que podem ser falazes. As aparências enganam; foi a primeira banalidade que aprendi na vida, e nunca me dei mal com ela. Daquela disposição nasceu em mim esse tal ou qual espírito de contradição que alguns me acham, certa repugnância em execrar sem exame vícios que todos execram, como em adorar sem análise virtudes que todos adoram. Interrogo a uns e a outros, dispo-os, palpo-os, e se me engano, não é por falta de diligência em buscar a verdade. O erro é deste mundo.” P. 34

-“ Considerai como crescem os lírios do campo; eles não trabalham nem fiam...Não andeis inquietos pelo dia de amanhã. Porque o dia de amanhã a si mesmo trará o seu cuidado; ao de hoje basta a sua própria aflição.” (S. Mateus) p. 55

-“Carlos Gomes continua a morrer. Até quando irá morrendo?” p. 59

- “Aí estou eu a repetir cousas que sabeis – uns por as haverdes lido, outros por vos lembrardes delas; mas é que há certas memórias que são como pedaços de gente, em que não podemos tocar sem algum gozo e dor, mistura de que se fazem saudades.” P. 65

- Redução de impostos. “Estas duas palavras raramente andam juntas; saudemos tão doce consórcio. Só um amor verdadeiro as poderia unir. Que tenham muitos filhos é o meu mais ardente desejo.” P. 67

- “Não se devem fazer visitas a desafetos; o menos que acontece é não acha-los em casa.” P. 73

- “A verdade, porém, é o que deveis saber, uma impressão interior. O povo, que diz as cousas por modo simples e expressivo, inventou aquele adágio: Quem o feio ama, bonito lhe parece. Logo, qual é a verdade estética? É a que ele vê, não a que lhe demonstrais.” P. 82

- Por que os transeuntes correm atrás de um ladrão na rua? P. 92 (boa reflexão)

- “Talvez por isso, mal os jornais dão notícia de um delito desses, o esquecimento absorve o criminoso. Não imprimam absolve; quem absolve é o júri, no caso de haver processo; eu digo que o esquecimento absorve o criminoso, no sentido de se não falar mais nisso.” P. 97

- “Os que parecem outros um dia é que estavam escondidos em si mesmos.” P. 117

A semana I

Uma vez encontrei com um leitor voraz de Machado de Assis quando eu lia suas obras para o Teatro. E ele quando me viu com o livro na mão achou estranho pois, “seu teatro além de pouco conhecido não é de boa qualidade, como ele mesmo reconhece.”

Então expliquei que meu objetivo ler toda a obra de Machado de Assis mesmo que tivesse que passar por algumas nem tão atraentes.


Pois bem, esse volume de crônicas intitulado “A semana I” (250 páginas!) é um desses que li “me arrastando”... (“A semana II” foi um pouco diferente). Eu me refiro ao conteúdo da maior parte ao relatar fatos e notícias muito específicos daquela época (entre 1892 e 1895) e que não me despertaram o interesse. Fui uma leitura interrompida várias vezes e com poucas anotações. 

Quincas Borba

Depois de ler Quincas Borba meu próximo cachorro se chamará... “Quincas Borba”, ou simplesmente, “QB” J Boa leitura!

Páginas recolhidas

Este volume, tal como diz o próprio Machado, reúne “contos e novelas, figuras que vi ou imaginei, ou simples ideias que me deu na cabeça reduzir a linguagem.” (...) Tudo é pretexto para recolher folhas amigas.”

Dom Casmurro

Segundo o escritor Raimundo Carrero, Dom Casmurro é um livro sobre ciúmes e não sobre traição.  Fiquei com isso na cabeça e quando decidi reler o clássico fiz uma lista dos ciúmes de Bentinho na medida em que apareciam no romance:
1-     “algum peralta da vizinhança” p. 103 (LXII)
2-     “dandy” p. 120; (LXXIII); p. 123 (LXXVI)
3-     Prima Justina p. 130 (LXXXI)
* Mas ele se vê alvo das belas mulheres. O que diria Capitu? Ela também não teria direito a ter ciúmes? P. 153 (XCVII)
4-     “os braços” p. 163 (CV)
5-     O olhar de Capitu, p. 191 (CXXVI)
6-     Como uma “carta”, p.197 (CXXXII)
7-     “andando e completando a semelhança”, p.199 (CXXXII)
8-     “a própria natureza jurava por si e eu não queria duvidar dela.”, p. 205 (CXXXVIII)
9-     “confusão dela fez-se confissão pura”, p. 207 (CXXXIX)
“velho ciúme”, p. 208 (CXL)

Escritos avulsos III

Iniciando com o conto ‘Casa Velha’, este volume de Escritos Avulsos, publicados entre 1885 e 1906, é o terceiro e último organizado pela editora. Além de Casa Velha gostei também de “Habilidoso” que retrata como a indução dos comentários de parentes e leigos influenciam a pessoa fazendo-a acreditar que de fato possui tal ou qual característica. O personagem tanto acreditou nas supostas qualidades que lhe atribuíam que acabou acumulando expectativas e frustrações ao longo da vida:

“Que este é o  último e derradeiro horizonte das suas ambições: um beco e quatro meninos.” p. 95

terça-feira, 30 de maio de 2017

As aflições da diversidade (artigo na revista Amálgama)

https://www.revistaamalgama.com.br/05/2017/olavo-de-carvalho-cine-pe-aflicoes-da-diversidade/



Para os intolerantes de sempre, a diversidade é bacana, mas apenas enquanto não incomoda.


É impossível deixar de notar o paralelo entre o comportamento dos cineastas que se retiraram do festival de cinema Cine PE (que acabou de ser cancelado), em protesto contra a participação do documentário O jardim das aflições sobre Olavo de Carvalho, e o comportamento de professores e estudantes da maior parte das universidades, em particular das áreas de humanas e artes.

Fica mais claro a cada dia que a ideia de uma universidade aberta ao contraditório e ao diferente é um mito. Como sabemos, o pensamento majoritário no ambiente acadêmico e entre os artistas é de “esquerda”, no sentido mais amplo possível. O mito da convivência boa e necessária dos opostos não difere quase nada tanto lá como cá, haja vista a Carta Aberta dos cineastas e suas motivações.
Quem frequenta ou lê notícias sobre festivais de cinema sabe que uma marca, talvez fundamental, desses eventos é a tão aclamada diversidade. É uma técnica inovadora, é um roteiro genial, é aquele curta boliviano ou o longo iraniano, entre tantos outros atrativos que só um ambiente aberto, plural, criativo pode propiciar. A diversidade é bacana, mas…
Conhecer o novo e o diferente é bom e necessário, mas se vai de encontro aos meus valores é melhor você ler e ficar só para você; é melhor você assistir na sua casa com seus amigos da casa grande, porque aqui no espaço público você não tem direito a ler, defender ou assistir, porque, do mesmo jeito que eu interdito as universidades para o bem maior de todos, eu também protesto e pressiono contra a exibição de qualquer filme que não passa pelos meus critérios de bem.
Não basta a forma autoritária de tratar o conhecimento, nem propor a censura diante de um “documentário conservador”. Essas pessoas vão além e destroem um dos conceitos mais caros apropriados pelo discurso da esquerda identitária e particularista: o conceito de alteridade. Impedir um conhecimento o mais integral possível, tentar censurar um filme ou documentário, opor-se a que o outro exponha suas preferências políticas é, em última análise, a negação inequívoca do outro. Mais uma vez, o apelo à alteridade é tão somente mais um mito.
Para concluir, é sempre bom explicitar o óbvio. Esse comportamento obtuso, excludente e autoritário, esse modo medíocre de ser e ver a vida não é monopólio da esquerda. Qualquer um que constatar o nosso interminável subdesenvolvimento intelectual, moral e político não pode em sã consciência atribuí-lo apenas a “um lado”. É necessário um estado de alerta permanente e estar aberto genuinamente ao livre debate de ideias, sem o que continuaremos numa guerra de torcidas, prontos a apontar o próximo erro do adversário. O aprendizado é longo, difícil, e a esquerda acaba de nos dar de bandeja uma boa oportunidade de reflexão.


Dilemas morais (artigo na revista Amálgama)

https://www.revistaamalgama.com.br/11/2016/dilemas-morais/


Qual o sentido de nos debruçarmos seriamente sobre eventos que nunca vivenciaremos e tomá-los como referência ética?


Volta e meia  surge o debate sobre algum dilema moral. O debate da vez foi proposto por um programa de TV a pretexto do lançamento do filme nacional Sob pressão: a pessoa deveria escolher entre ajudar a um “policial levemente ferido” ou a um “traficante em estado grave”.
O dilema está no fato de que o indivíduo encontra-se diante de escolhas alternativas e excludentes. O debate em torno dessas situações, reais ou fictícias, traz a seguinte pergunta: o que você faria numa situação como esta? Se as pessoas apenas escolhessem A ou B e não pensassem mais no assunto não teríamos a repercussão geralmente barulhenta de costume. Não raro, no entanto, o indivíduo que responde a esta pergunta, para um lado ou para o outro, faz um conjunto de extrapolações na tentativa de construir sobre si mesmo uma referência ética (ou em casos mais radicais, as extrapolações buscam também uma referência político-ideológica). Se eu escolho uma das opções eu me vejo como portador de certas virtudes e comportamentos, supostamente correspondentes a A ou B, alternativamente, e tenho a expectativa de que os outros também me vejam assim.
Minhas objeções a esse tipo de debate giram em torno de dois argumentos. O dilema tal como geralmente nos é apresentado não existe na realidade. É claro que alguns efetivamente ocorreram, mas então vem o segundo argumento que diz respeito ao seu caráter excepcional e extraordinário tornando-o de pouca utilidade para a construção daquela referência a qual me referi. Se nós pensarmos na probabilidade de tais eventos ocorrerem na vida real da maior parte das pessoas veremos que é extremamente baixa. A julgar pelas reações de algumas pessoas, hoje em dia mais visíveis com a ajuda das redes sociais, esse tipo de debate é visto como um divisor de águas ético que define as “pessoas de bem”- que se parecem comigo, claro – e os meus “inimigos políticos”. Qual o sentido de nos debruçarmos seriamente sobre eventos que nunca vivenciaremos e tomá-los como referência ética?
Em 2013, quando foi lançado no Brasil o filme A hora mais escura, eu acompanhei um debate entre o filósofo Vladimir Safatle e o psicanalista Contardo Caligaris sobre o dilema moral proposto pelo filme. A produção norte-americana narra como foram as investigações para localizar o terrorista Osama Bin Laden. No filme os agentes da CIA recorrem repetidas vezes à tortura para obterem informações sobre o paradeiro do terrorista. O artigo de Safatle, mesmo sem o mencionar explicitamente, é uma resposta ao artigo de Caligaris que propõe a seguinte questão: “Uma criança foi sequestrada e está encarcerada em um lugar onde ela tem ar para respirar por um tempo limitado. Você prendeu o sequestrador, o qual não diz onde está a criança sequestrada. Infelizmente, não existe (ainda) soro da verdade que funcione. A tortura poderia levá-lo a falar. Você faz o quê?”
O artigo do filósofo parte da seguinte pergunta: “podemos torturar alguém cuja confissão nos permitirá desativar uma bomba que matará dezenas de inocentes?” Ao discutir o dilema Safatle prefere seguir o caminho de que há uma intenção (uma má intenção) escondida na astúcia de quem pergunta cuja agenda ideológica seria afastar as pessoas de questões que realmente importam. Não é o caso de expor aqui minhas discordâncias quanto a isso, mas, pelo contrário, sublinhar minha concordância, em especial quando ele afirma:  “Do ponto de vista da filosofia moral, não há exercício mais pueril do que procurar responder a tais inventivas”, pois esses “paradoxos morais de laboratório” pressupõem condições de laboratório, como “sei que o sujeito torturado sabe algo sobre a bomba”, “sei que não há hipótese alguma de ter pego a pessoa errada”, “sei que ele falará antes de morrer”, “sei que a razão de sua ação é injustificável”. Safatle conclui suas indagações afirmando que como ninguém mora em um laboratório, mas depende, no mais das vezes, da sabedoria da polícia, tais condições nunca são completamente asseguradas.
Estas me parecem indagações válidas e que põem em xeque os pressupostos de um dilema moral válido para a vida real. Como aceitar as repercussões de um dilema moral na nossa vida se nossas reflexões o afastam tão radicalmente da realidade?
Vejam, por exemplo, mais essa situação proposta por Dwight Furrow:
Suponha que você esteja atrasado para uma entrevista para um emprego que lhe promete garantir um avanço significativo em sua carreira e um substancial aumento de salário. Você está em Boston, no mês de janeiro. Faz frio e a neve está começando a cair. Para ganhar tempo, você faz um atalho através de uma viela e para, petrificado, ao ouvir um choro de bebê vindo detrás de uma fila de latas de lixo. Você descobre que um bebê foi abandonado, coberto somente por um cobertor fino. Não há ninguém por perto, seu celular está sem bateria, e se você parar para prestar auxílio, certamente perderá a entrevista e sacrificará sua chance de ocupar o novo emprego.
O que fazer numa situação como essa? Segundo o autor, várias pesquisas indicam que a maioria agiria para salvar a criança. Porém, mantendo o foco no que nos interessa, para que o dilema funcione e nos cause algum desconforto moral na vida real precisamos concordar que os vários pressupostos ocorrem na realidade, isto é, “se você chegar atrasado à entrevista perderá o emprego”, “se passar por uma viela”, “se a bateria do celular estiver descarregada”, “se a temperatura estiver alta ou baixa”, “se não houver vivalma para ajudar”, “se não houver ajuda haverá a morte”; etc.
Como dito anteriormente, o que eu desejo destacar é a baixíssima probabilidade de todas as condições ocorrerem concomitantemente e não apenas isso, pois, uma coisa é as chances de tais condições ocorrerem ao mesmo tempo, criando o evento pretendido; outra coisa é as chances do evento em si mesmo (já constituído) ocorrer e se repetir na realidade para uma quantidade significativa de pessoas de modo a representar algo desconfortável,  e passe a ser uma referência de comportamento a ser seguido ou evitado.
Em outras palavras, os dilemas morais são situações-limite extraordinárias com baixíssima probabilidade de ocorrerem na vida real e, desse modo, com pouco poder de generalização pelo simples fato de que ninguém vive em vielas ou laboratórios.
Nesse ponto creio que seja necessário afirmar que nas reflexões sobre tais dilemas talvez haja algum valor heurístico digno de nota, sobretudo no ambiente acadêmico. Talvez. O próprio Safatle os chama “passatempos acadêmicos” e eu, pessoalmente, num exercício de autocrítica, tenho muitas reservas às pesquisas nessa área.
Mas, então, o que importa na busca do que eu chamei referência ética? Uma perspectiva que me parece interessante é defendida por Tara Smith em seu livro sobre a ética de Ayn Rand. Smith dirá que a moralidade é desenhada para guiar as ações humanas no curso normal de eventos (the normal course of events) de nossas vidas e não para casos de emergências ou situações-limite que nunca ocorreram e provavelmente nunca ocorrerão para a maioria dos indivíduos ao longo de todas as suas vidas. O curso normal de eventos é onde vivemos, dirá Smith.
As situações-limite envolvendo questões morais, exatamente por não fazerem parte da nossa rotina, não possuem (ou talvez possuam muito pouco) orientação sobre como devemos agir eticamente no cotidiano. Um princípio de orientação, por definição, só é possível em circunstancias essencialmente previsíveis. Os dilemas morais propostos são o oposto disso. Numa palavra, um princípio de orientação moral que lida apenas com o extraordinário torna-se inócuo para o nosso dia a dia.
Dito isso a ideia de “referência ética” ficará melhor definida se pensada como o conjunto de valores constituído a partir de nossas relações interpessoais reais e ordinárias ao longo do tempo e com o qual nos identificamos e que nos orienta eticamente na manutenção daquelas relações e na busca de nossa noção particular de “bem”.