quinta-feira, 30 de junho de 2016

Contos Fluminenses

Neste volume estão reunidos 7 (sete) contos todos relacionados ao cotidiano fluminense, seja na Corte, seja em Petrópolis. Meu destaque vai para o conto “Luís Soares” no qual, mais uma vez, Machado de Assis descreve-nos um personagem que deseja a ascensão social, ou a manutenção de seu status, sem envidar qualquer esforço, isto é, é mais um “Romualdo” descrito em Escritos Avulsos I.
Começo a desconfiar que Machado de Assis tem alguma predileção por esse tipo social e deverei encontra-lo outras vezes na medida em que avançar nas leituras. Digo isso pensando que também em "O segredo de Augusta" (neste mesmo volume) estes tipos estão lá vividos por Vasconcelos e Gomes.

Eis a descrição de Soares:
"Não lia jornais. Achava que um jornal era a cousa mais inútil deste mundo, depois da Câmara dos Deputados, das obras dos poetas e das missas. Não quer isto dizer que Soares fosse ateu em religião, política e poesia. Não. Soares era apenas indiferente. Olhava para todas as grandes cousas com a mesma cara com que via uma mulher feia. Podia vir a ser um grande perverso; até então era apenas uma grande inutilidade."

Após a dissipação de sua herança e o abandono dos “amigos” Soares planeja casar-se com a prima rica Adelaide nem que para isso se envolva em situações ridículas e desesperadoras.
   
Seu final é trágico e esquecido pelos amigos:

"Pires soube na rua da notícia, e correu à casa de Vitória, que encontrou no toucador.
- Sabes de uma coisa? perguntou ele.
- Não. Que é?
- O Soares matou-se.
- Quando?
- Neste momento.
- Coitado! É sério?
- É sério. Vais sair?
- Vou ao Alcazar.
- Canta-se hoje Barbe-blue, não é?
- É.
- Pois eu também vou.
 E entrou a cantarolar a canção Barbe-blue.
Luís Soares não teve outra oração fúnebre dos seus amigos mais íntimos."

quarta-feira, 29 de junho de 2016

A Europa que eu vi

Interessante que A Europa que eu vi começa por ...Dakar no Senegal e continua por Tenerife nas ilhas Canárias, Ilha da Madeira, “a pérola do Atlântico’, e, finalmente, desembarca em Portugal. Em Portugal, Beli Carneiro da Cunha descreve em detalhes as várias cidades que visitou com ênfase no turismo religioso. As viagens da autora ocorreram em 1938, 1948 e 1950.
Na cidade de Mafra visitou o grandioso mosteiro construído por D. João V. Destaco esta passagem:
“Na cozinha imensa, vi panelas descomunais, pias e um tanque para lavagem de louças e caçarolas, com um dispositivo, a carvão ou lenha, para o aquecimento d’água de dissolução da gordura. Antes da cozinha, uma sala guarda a louça. Achei bem pequeno o caneco d’água ao passo que bem grande o caneco de vinho e, enorme, o urinol. ” P. 17.
No final do capítulo sobre Portugal ela elogia a organização e educação dos portugueses com uma franqueza política rara nos dias de hoje:
“Há respeito e ordem em tudo. O povo, em geral, é educado, contrastando com a rispidez do nosso Zé Povinho.
Vendo Portugal, sob a ditadura, com seu povo ordeiro, respeitador e delicado, o meu conceito de liberdade, sob a democracia, se abala. ” P. 33

Em seguida parte para a França também visitando diversas cidades. Em Nice dirá o que todo nordestino constata das praias europeias: “Cidade cosmopolita, muito cheia de turistas, cuja praia, muito aquém das nossas como beleza física...” E já se escandalizando com os trajes de banho da época...” apenas se destaca pelas roupinhas de banho constituídas apenas do essencial, sem o que a nudez feminina seria completa. ” P. 40.


Na Itália o turismo religioso se intensifica. Ao visitar o Colégio das Doroteias, em Roma, destaca o fenômeno do corpo incorrupto de Paula Frassinetti e lança um desafio: “Que dizem os hereges, os ateus, os incrédulos e os cientistas diante do corpo da beata Paola? Do que vi, resultou aumentada a minha fé. ” P. 48
Em seguida Beli partiu para a Suíça escrevendo um pequeno relato.

 Na Áustria destacou que no hotel onde se hospedou havia a inscrição: “Os judeus são indesejáveis neste hotel. ” p. 59
Sobre Viena escreveu “a minha estada foi povoada de temores. ” E prosseguia narrando os 3 dias de visita em julho de 1938, “Sentia-me, a despeito de estrangeira, constrangida naquele ambiente de ocupação, com caminhões repletos de soldados embalados percorrendo as ruas de maior movimento, em demonstração de força, enquanto a população, humilhada, se mostrava assustada e temerosa. ”
(...)
“ O ‘Hell Hitler’ eu o ouvia em todos os lugares, em todos os momentos, por todos os motivos: nas lojas, nas ruas, no hotel, e, até no elevador. A cada exclamação, um caricato levantar de braços...” p. 60

Na Hungria, sarcasticamente, escreveu: “Ao tempo em que lá estive, a Hungria era um reino sem rei, com um regente almirante, de um país sem esquadra e sem porto de mar. ” E continua no mesmo tom, ao falar das cidades de buda e Pest, comentando a imagem que se tinha do Brasil: “Elegantes e magníficas pontes fundem as duas cidades onde o Brasil é apenas conhecido como um longínquo país povoado de serpentes e que produz café. ” P. 62


E conclui seu relato descrevendo sua rápida passagem por Berlim onde passou apenas 2 dias.

A emoção de manusear cuidadosamente as páginas já bastante envelhecidas e com o cheiro do tempo, bem como as fotos cujos personagens, provavelmente, já não existem mais, me trouxe a reflexão, a exemplo da caveira encontrada entre os utensílios da cela franciscana visitada por Beli no mosteiro de Mafra, de que seu singelo relato é também um alerta de que tudo passará.
Diante disso, nada melhor que concluir esta resenha com a epígrafe do livro de Beli Carneiro da Cunha:
“ Fazer projetos para uma existência de 100 anos e cumpri-los a cada momento como se não tivéssemos para viver se não 24 horas. ”

Farsa de Inês Pereira

A divertida Farsa de Inês Pereira apresenta um contraste com o Auto da Barca do Inferno e O Velho da Horta no tocante à mensagem moralizante. Como vimos anteriormente, nestas peças os personagens que cometem alguma falta são punidos, seja indo para o inferno, seja perdendo seus bens. No caso de Inês Pereira mesmo traindo o marido ela não recebe qualquer punição.

Atendo-me tão somente à leitura da peça observei que há um momento que poderia ser tido como atenuante para a não punição de Inês. É aquele em que Lianor Vaz, a alcoviteira, surge na história dizendo como havia sido assediada de modo violento por um clérigo a caminho da casa de Inês. Esse episódio não possui maiores repercussões no desenrolar da peça, porém poderia ser sugerir que a traição de Inês seria uma espécie de "revanche" contra um comportamento usual dos homens, inclusive, clérigos.
 
 Observem como é forte a descrição que Lianor faz quando ela recusa as investidas do padre:
(...)
E hum clérigo, mana minha,
 Pardeos, lançou mão de mi;
 Não me podia valer
(...)
Quando o vi pegar comigo,
 Que m'achei naquele p'rigo:
 – Assolverei! - não assolverás!
 –Tomarei! - não tomarás!
 – Jesu! homem, qu'has contigo?
– Irmã, eu te assolverei
 Co breviairo de Braga.
 – Que breviairo, ou que praga!
 Que não quero: aqui d'el-Rei! –
 Quando viu revolta a voda,
Foi e esfarrapou-me toda
 O cabeção da camisa.
(...)

Os estudiosos da obra de Gil Vicente certamente têm mais elementos para explicar o porquê de o autor não ter concluído a peça com esta mensagem moralizante. Gil Vicente escreveu 44 autos e a análise em conjunto dessa obra indicaria se a Farsa de Inês Pereira é algo que foge a algum padrão pretendido pelo autor ou se simplesmente Gil Vicente estava interessado em descrever a vida como ela é.

O velho da horta e o Auto da barca do inferno

O velho da horta é uma farsa que conta a história de um velho que se apaixona por uma jovem camponesa que encontra em sua horta.  Para conquista-la não medirá esforços e dinheiro o que acarretará sua ruína.
A história é marcada por elementos constantes na definição de "farsa", isto é, uma pequena peça cômica popular, de concepção simples e de ação trivial ou burlesca, em que predominam gracejos, situações ridículas etc. Aliado a isso, temos também um final moralizante no qual o velho é punido.

Há um momento na peça em que a alcoviteira, Branca Gil, canta uma ladainha que me fez lembrar os emboladores/repentistas do Nordeste quando brincam com o público, especialmente dentro dos ônibus. Segundo a nota dos organizadores, “A ladainha de Branca Gil menciona uma série de “santos” que eram na verdade membros da corte portuguesa na época em que a farsa foi encenada. Com esse recurso Gil Vicente tornou a peça mais engraçada para a sua plateia, fazendo com que muitos dos espectadores se vissem retratados no palco de forma cômica e que outros reconhecessem ali personalidades eminentes de seu tempo. ”

O Auto da barca do inferno é um tipo de peça a qual o próprio Gil Vicente chama “autos da moralidade”. Na medida em que as pessoas morrem elas se dirigem para tomar uma barca. Conforme as suas ações em vida serão embarcadas a caminho do inferno ou do paraíso. A intenção é instruir moralmente os espectadores de acordo com a fé cristã.


É interessante notar a concepção de diabo apontada na apresentação da peça: “A figura do diabo de Gil Vicente é muito original por não se apresentar como o tradicional sedutor que corrompe, mas um irônico observador que revela os males ocultos de cada alma. Com humor e inteligência, o personagem assume a forma de falar dos que chegam e atira os vícios e as fraquezas de volta a cada um, insistindo para que subam à barca do inferno. ”

terça-feira, 28 de junho de 2016

O melhor do teatro grego

Dentre as tragédias gregas esta seleção publicada pela Zahar traz se não as mais importantes, pelo menos as mais conhecidas, além da comédia de Aristófanes:
- Prometeu acorrentado, Ésquilo
- Édipo Rei, Sófocles
- Medeia, Eurípedes
- As Nuvens, Aristófanes

Apresentação bastante esclarecedora e estimulante de Adriane da Silva Duarte, "Teatro grego: o que saber para apreciar" e tradução de Mário da Gama Kury.

Há ainda uma 'introdução' que precede cada peça possibilitando ao leitor uma melhor compreensão da produção literária do respectivo autor e do contexto histórico no qual está inserido, bem como, ao final, apresenta-se um "perfil dos personagens".


Lembro que certa vez, quando havia acabado de ler Antígona de Sófocles, a sugeri para uma amiga e ela recusou pois, segundo ela, "não estaria à altura" para "entender" a peça. Tentei persuadi-la do contrário até porque ela não conhecia nada dos gregos. Se é fato que há estudos eruditos e densos sobre o teatro grego é igualmente verdadeiro que o leigo pode compreender e apreciar a trama sem maiores dificuldades. Há um temor e certo preconceito de algumas pessoas ao serem apresentadas a áreas do conhecimento e das artes por estas serem tidas como "restritas a intelectuais" o que é uma pena.

segunda-feira, 20 de junho de 2016

Escritos Avulsos I

Nos "Escritos Avulsos I" encontram-se reunidos 18 contos e crônicas. Eu destaco "O programa". O mestre Pitada ensinava a seus alunos que ele havia chegado onde chegou graças a um programa. O programa do mestre nada mais era que o estabelecimento de objetivos na vida e o meio de alcançá-los: "...desde os meus quinze  ou dezesseis anos, organizei o programa da vida: estudos, relações, viagens, casamento, escola; todas as fases da minha vida foram assim previstas, descritas e formuladas com antecedência..." p. 310
Alguns anos depois, Romualdo, um de seus discípulos, decidiu por em prática o seu programa de vida: casar-se com uma mulher rica, tornar-se senador, viajar pelo mundo etc.
O que chama à atenção no programa de Romualdo é que ele pretende alcançar tudo isso sem o menor esforço. Aliás, casar-se com uma mulher rica é sua prioridade número um. Não se trata apenas de sonhar acordado sem qualquer base na realidade, Romualdo quer mesmo é se dar bem à custa dos outros.

Em um de seus livros José Guilherme Merquior menciona o sociólogo Ralf Dahrendorf (1929-2009) quando este, ainda na década de 70, chama a atenção dos sociólogos para dois fenômenos que merecem análise: o crescente uso de drogas e as pessoas que queriam ganhar dinheiro fácil. A questão das drogas tornou-se um tema corrente entre os analistas sociais, porém a análise de indivíduos que "querem se dar bem" sem esforço, ao que parece, não é visto como um problema social digno de nota. Ganhar dinheiro fácil não passa, necessariamente, pelo cometimento de crimes como o estelionato, por exemplo. As peripécias de Romualdo são retratadas como  "espertezas" de um indivíduo que internalizou a ideia de que ele "merece" alcançar o seu programa de ascensão social indiferente às noções de esforço, disciplina, perseverança, competência, mérito, respeito pelos outros etc. O fim dos "Romualdos" é o ressentimento social, outro fenômeno secundarizado pelos analistas.
A leitura de "O programa", sob este aspecto sociológico, torna-se atual na medida em que nos ajuda a compreender parte do comportamento de indivíduos e grupos de indivíduos numa sociedade a cada dia mais conflitiva e ressentida.

PS.: Acabo de ler a coluna de João Pereira Coutinho na qual o filósofo comenta o último livro de  Theodore Dalrymple, "Qualquer Coisa Serve". Falando sobre o ressentimento social, com humor, Dalrymple sugere a criação da "Faculdade de Estudos do Ressentimento". O acesso seria fácil: "Tudo o que você precisaria fazer seria criticar seus pais num exame público".

Helena

"Ainda hoje tenho ante os olhos o sorriso com que aquele homem me respondia. Era um sorrir de compaixão que humilhava. Sem nunca haver recebido de mim a menor ofensa, vejo que ele tinha um prazer secreto com o meu infortúnio. Por quê? Deixo aos filósofos liquidarem esse enigma da natureza humana."