quinta-feira, 1 de junho de 2017

É chique ser grosseiro (artigo na revista Amálgama)

https://www.revistaamalgama.com.br/05/2017/danilo-gentilli-maria-do-rosario-chique-ser-grosseiro/


O que diremos de formadores de opinião que tentam elevar a vulgaridade ao patamar de “disputa política”?

Num recente artigo aqui na Amálgama eu critiquei cineastas que promoveram a censura ao filme O jardim das aflições sobre o pensador Olavo de Carvalho. Concluía o texto afirmando que o nosso interminável subdesenvolvimento intelectual, moral e político não era obra de apenas “um lado” e que o comportamento daqueles cineastas era uma boa oportunidade de reflexão.
Passadas apenas algumas semanas, eis que a “direita” protagoniza um triste espetáculo. Eu me refiro ao apoio massivo dado ao vídeo do humorista Danilo Gentili em resposta à deputada petista Maria do Rosário.
O vídeo pode ser visto apenas como mais um golpe publicitário que aumenta a audiência e a conta bancária do apresentador. Quanto ao conteúdo do vídeo, pessoalmente eu prefiro um humor que escrache os políticos e preserve o decoro, a decência e o bom gosto. E não precisamos fazer muitas elucubrações quanto a isso; basta você comparar, por exemplo, o personagem de Chico Anysio, “Deputado Justo Veríssimo”, e mesmo o humor do Casseta e Planeta, para perceber quão grosseiro e mal-educado é o vídeo em questão.
Reconheço também, embora não use como justificativa, que a degradação nesse contexto é dupla. Só mesmo uma política tão achincalhada como a nossa para permitir esse tipo de lixo.
Liberais e conservadores, mas não só eles, deveriam ler o pensador conservador inglês Theodore Dalrymple. Ele é especialmente preocupado com a rápida decadência moral ocorrida na Inglaterra e no Ocidente de um modo geral. Dalrymple responsabiliza o freudianismo, o marxismo e autores como John Stuart Mill por estimularem um relativismo total, de modo que os valores caros às relações sociais estejam simplesmente desmoronando. Embora o autor dirija sua crítica à esquerda e aos progressistas, não nos enganemos: ela cai como uma luva no comportamento de Gentili e da manada que decidiu apoiá-lo nas redes sociais.
Eu me refiro especificamente ao capítulo “É chique ser grosseiro” do livro A vida na sarjeta: o círculo vicioso da miséria moral. Dalrymple examina como o comportamento marcado pela vulgaridade e violência praticado cada vez mais por ingleses das classes mais pobres (subclasse/underclass), mas não só elas e, em especial, por celebridades, ganha ares de normalidade nas relações sociais. Um exemplo: Dalrymple foi a Roma para uma reportagem sobre vandalismo de torcidas de futebol. O jogo era Itália X Inglaterra. Segundo ele, os 10 mil britânicos que foram ao jogo têm empregos que pagam muito bem, que exigem instrução e treinamento. No estádio ele presenciou os “típicos modos desagradáveis” das torcidas, que cantavam insultos por quase três horas contra a torcida italiana. Aos poucos com que ele pode conversar, perguntou se “Não achavam impróprio viajar 1.600 km somente para gritar obscenidades para estranhos?” Eles respondiam que achavam divertido e era também uma “libertação necessária”.
Libertação exatamente de quê? Da frustração, responderam, caso respondessem alguma coisa. A nenhum deles ocorreu que os dramas mesquinhos de suas vidas particulares não justificam uma atividade antissocial. Pensavam que a frustração era como o pus em um abscesso, melhor fora do que dentro, e recordei-me de um assassino que certa vez me disse que teve de matar a vítima, caso contrário não sabia o que poderia ter feito.
Não acredito que Gentili viva alguma frustração pessoal. Seu drama mesquinho é ganhar audiência e com ela, dinheiro. Se em nossa sociedade há quem goste do que ele faz, tanto melhor para ele. Mas o que me chama a atenção é o apoio político que ele recebeu.
Voltando à repercussão nas redes sociais, observei algumas páginas e blogs de movimentos e formadores de opinião de direita que ocasionalmente acompanho e destaquei alguns deles: “Para a esquerda: colocar dinheiro na cueca: tudo certo. Colocar papel picado na cueca: nossa, que absurdo, machista” (8 mil curtidas, 3 mil compartilhamentos). “Bundaço Fora Temer: manifestação cultural da esquerda lacradora. Passar tentativa de censura no saco: ato fascista repugnante da direita raivosa”. (8 mil curtidas, 3600 compartilhamentos). Tela do Twitter de Maria do Rosário ameaçando processar o apresentador e logo abaixo um comentário: “E o dinheiro que recebeu da empreiteira? Vai ser usado pra pagar os advogados?” (29 mil curtidas, 4200 compartilhamentos). Mais uma tela com a denúncia da deputada e vários comentários no mesmo tom (24 mil curtidas, 3500 compartilhamentos). Montagem: foto conhecida de Lula com a mão dentro da calça e a deputada sorrindo; foto de Gentili com a mão dentro da calça e a deputada chorando (16 mil curtidas, 2750 compartilhamentos). O site Catraca Livre classificou o ocorrido de baixaria e seus opositores lembram que o site tentou usar a tragédia da Chapecoense para ganhar views (15 mil curtidas, 1600 compartilhamentos). Formadores de opinião em economia, política e filosofia cujas análises normalmente aprecio, todos seguindo a manada. Finalmente, um determinado blog reconhece que o apresentador passou dos limites, “Mas em um momento em que é preciso quebrar a espiral do silêncio, atitudes desse tipo são mais que urgentes” (20 mil curtidas, 2200 compartilhamentos).
Observem que há um padrão: eu justifico o comportamento do humorista pelos erros do outro lado. Eu não o justifico por possíveis méritos inerentes ao comportamento em si, se houver. Eu sou vulgar porque você é também vulgar. É possível encontrar postura mais infantil e superficial? O que impedirá, no limite, de dizerem “o meu candidato rouba porque o seu também o faz”?
Mais uma vez Dalrymple pode ser útil. Em seu livro Em defesa do preconceito: a necessidade de se ter ideias preconcebidas, ele mencionará uma garota problemática que afirma xingar alguns professores porque não gosta deles. Ele dirá:
A ideia de que não gostar de alguém não constitui base suficiente para xingar esse alguém, o fato de relações sociais toleráveis requererem autocontrole, de viver em sociedade implicar o dever de se submeter a limites não foram noções inculcadas nessa garota como um preconceito, e agora parecia muito improvável que ela aprendesse essas coisas, e muito menos provável ainda que fosse conformar o seu comportamento a tais padrões.
Reparem que ele se refere a meninas (a garota no caso tem apenas 14 anos de idade) com pouca instrução, num contexto de família inglesa desestruturada e baixa classe social, que mal conseguem usar a língua nativa corretamente e lutam para se fazer compreender “como se fossem vítimas de um derrame”. O que diremos então de marmanjos bem alimentados que frequentaram boas escolas e tentam se passar por jovens problemáticos? O que diremos de formadores de opinião que tentam elevar a vulgaridade ao patamar de “disputa política”? Talvez eles deem de ombros e digam, cinicamente, “a esquerda me faz agir assim”.
Gentili conclui seu vídeo tentando ensinar algo edificante: “Eu pago seu salário, então eu decido se você cala ou não a boca, nunca ao contrário”. E sugere que seus apoiadores digam o mesmo a todos os políticos que tentarem censurá-los. Quem foi que disse que Gentili paga sozinho o salário da deputada? Quem concorda com ela não paga também? E mesmo que esse raciocínio fosse correto, com que direito ele manda alguém calar a boca? E mais, o direito que ele tem de falar (que nega ao outro) garante que ele falte ao respeito com quem quer que seja?
Que imbecilidades e grosserias sejam ditas por indivíduos isolados por motivos os mais diversos é algo que acontece e, se for o caso, que sejam punidos por isso. Mas quando assistimos a movimentos políticos e formadores de opinião que dizem lutar por uma nova forma de fazer política e novos ideais embarcarem nessa estupidez, é digno de pena.


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